sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Via Crucis - Um conto de Natal!

Maria das Dores se assustou. Mas se assustou de facto. Começou pela menstruação que não veio. Isso a surpreendeu porque ela era muito regular. Passaram-se mais de dois meses e nada. Foi a uma ginecologista. Esta diagnosticou uma evidente gravidez.
— Não pode ser! gritou Maria das Dores.
— Por quê? a senhora não é casada?
— Sou, mas sou virgem, meu marido nunca me tocou. Primeiro porque ele é homem paciente, segundo porque já é meio impotente.
A ginecologista tentou argumentar:
— Quem sabe se a senhora em alguma noite...
— Nunca! mas nunca mesmo!
— Então, concluiu a ginecologista, não sei como explicar. A senhora já está no fim do terceiro mês.
Maria das Dores saiu do consultório toda tonta. Teve que parar num restaurante e tomar um café. Para conseguir entender.
O que é que estava lhe estava acontecendo? Grande angústia tomou-a. Mas saiu do restaurante mais calma.
Na rua, de volta para casa, comprou um casaquinho para o bebé. Azul, pois tinha certeza que seria menino. Que nome lhe dana? Só podia lhe dar um nome: Jesus.
Em casa encontrou o marido lendo jornal e de chinelos. Contou-lhe o que acontecia. O homem se assustou:
— Então eu sou São José?
— E, foi a resposta lacónica.
Caíram ambos em grande meditação.
Maria das Dores mandou a empregada comprar as vitaminas a ginecologista receitara. Eram para o benefício de seu filho. Filho divino. Ela fora escolhida por Deus para dar ao mundo o novo Messias.
Comprou o berço azul. Começou a tricotar casaquinhos e a fazer fraldas macias.
Enquanto isso a barriga crescia. O feto era dinâmico: dava-lhe violentos pontapés. Às vezes ela chamava São José para pôr a mão na sua barriga e sentir o filho vivendo com forca. São José então ficava com os olhos molhados de lágrimas. Tratava-se de um Jesus vigoroso. Ela se sentia toda iluminada. A uma amiga mais íntima Maria das Dores contou a história abismante. A amiga também se assustou:
— Maria das Dores, mas que destino privilegiado você tem!
— Privilegiado, sim, suspirou Maria das Dores. Mas que posso fazer para que meu filho não siga a via crucis?
— Reze, aconselhou a amiga, reze muito.
E Maria das Dores começou a acreditar em milagres. Uma vez julgou ver de pé ao seu lado a Virgem Maria que lhe sorria. Outra vez ela mesma fez o milagre: o marido estava com uma ferida aberta na perna, Maria das Dores beijou a ferida. No dia seguinte nem marca havia.
Fazia frio, era mês de Julho. Em Outubro nasceria a criança.
Mas onde encontrar um estábulo? Só se fosse para uma fazenda do interior de Minas
Gerais. Então resolveu ir a fazenda da tia Mininha. O que a preocupava é que a criança não nasceria em vinte e cinco de Dezembro. Ia à igreja todos os dias e, mesmo barriguda, ficava horas ajoelhada. Como madrinha do filho escolhera a Virgem Maria. E para padrinho o Cristo. E assim foi se passando o tempo. Maria das Dores engordara brutalmente e tinha desejos estranhos. Como o de comer uvas geladas. São José foi com ela para a fazenda. E lá fazia seus trabalhos de marcenaria. Um dia Maria das Dores empanturrou-se demais – vomitou muito e chorou. E pensou: começou a via crucis do meu sagrado filho. Mas parecia-lhe que, se desse a criança o nome de Jesus, ele seria, quando homem, crucificado. Era melhor dar-lhe o nome de Emmanuel. Nome simples. Nome bom.
Esperava Emmanuel sentada debaixo de urna jabuticabeira. E pensava:
- Quando chegar a hora, não vou gritar, vou só dizer: ai Jesus!
E comia jabuticabas. Empanturrava-se a mãe de Jesus.
Até que numa noite, as três horas da madrugada, Maria das Dores sentiu a primeira dor. Acendeu a lamparina, acordou São José, acordou a tia. Vestiram-se. E com um archote iluminando-lhes o caminho, dirigiram-se através das árvores para o estábulo. Uma grossa estrela faiscava no céu negro.
As vacas, acordadas, ficaram inquietas, começaram a mugir Daí a pouco nova dor. Maria das Dores mordeu a própria para não gritar. E não amanhecia.
São José tremia de frio. Maria das Dores, deitada na palha, um cobertor, aguardava.
ntão veio urna dor forte demais. Ai Jesus, gemeu Maria das Dores. Ai Jesus, pareciam mugir as vacas.
As estrelas no céu. Então aconteceu. Nasceu Emmanuel. E o estábulo pareceu iluminar-se todo. Era um forte e belo menino que deu um berro na madrugada. São José cortou o cordão umbilical. E a mãe sorria. A tia chorava.
Não se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam.

Clarice Lispector.

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